Ultimamente, tenho tido bastantes trabalhos de revisão (por isso, tenho diminuído os posts aqui). Um deles é que estou atualizando a ortografia de obras literárias clássicas brasileiras e portuguesas. Nessa empreitada, enquanto revisava Ao Correr da Pena, livro de crônicas de José de Alencar, publicado originalmente em folhetim para o Jornal Correio Mercantil, entre 1854 e 1855, deparei-me com esta, cujo conteúdo julguei interessante, por se tratar de um olhar curioso sobre um elemento  gráfico da língua portuguesa: o ponto de interrogação! "Ei-lo":

IV

4 de novembro de 1855.

 

Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.

Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.

Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.

Com efeito, o que é um ponto de interrogação?

Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.

Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação;

basta olhar-lhe para a cara.

Vede: ?

É um pequeno anzol.

Ora, para que serve o anzol?

Para pescar.

Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para

pescar.

Exemplo:

1) Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber; deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:

– Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?

2) Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o cordel e lançais o anzol de repente:

– O Sr. pode emprestar-me aí uns duzentos mil réis?

3) Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e por fim deitais o anzol:

– Uma só palavra: tu me amas?

É preciso porém que se advirta numa coisa.

O ponto de interrogação é um anzol, e por conseguinte serve para pescar; mas tudo depende da isca que se lhe deita.

Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e simplesmente:

– Empresta-me trezentos mil réis?

Não; é preciso que o anzol leve isca, e que esta isca seja daquelas que o peixe que se quer pescar goste de engolir.

Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.

Assim, ou dizem:

– Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me trezentos mil réis? (anzol).

Ou então empregam o segundo meio:

– Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável quantia de trezentos mil réis?

No meio do discurso já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o outro lhe lança o anzol, é com certeza de trazer o peixe.

Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem chegado a um aperfeiçoamento miraculoso.

Fica para outra ocasião.

Por ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro anzol.

O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico como não há outro no mundo.

Às vezes, quando se olha para esta figurinha aleijada, o ponto de interrogação parece-se mais com um daqueles corcundinhas, espécie de demoninhos maliciosos, de que falam os contos de fada e que viviam a fazer pirraças aos homens.

É que de fato há ocasiões em que ele torna-se realmente um anãozinho zombeteiro e impertinente, que leva a ousadia até a rir-se nas barbas de um pobre homem.

Haveis de ter encontrado pelo mundo algum desses homens que depois de terem feito todo o mal que podem a outro, vêm com o riso nos lábios insultar a dor e envenenar com sua baba a ferida mal cicatrizada.

Este homem atira à cara do outro o corcundinha de que vos falei, e dirige pouco mais ou menos uma pergunta neste sentido:

– Então, meu amigo, por que não me conta os seus pesares? Não tem confiança em mim?

Há também um certo ponto de interrogação que tem seus ares de mestre de latim ou de professor de primeiras letras.

Este é carrancudo e severo; tem a voz áspera e fanhosa, como do homem que toma rapé; e ordinariamente anda aos pulos.

Lembro-me perfeitamente que na minha aula de latim às vezes estava eu bem distraído, quando ele saltava-me pela frente gritando:

– Hora-ae, vocativo?

Felizmente todas as coisas deste mundo têm verso e reverso; o ponto de interrogação, que quase sempre é um anzol, um anão corcunda, ou um pedagogo, parece-se às vezes com um desses meninos travessos e gentis, um desses anjinhos curiosos e inocentes que desejam saber tudo.

Então ele pergunta, mas é como o filho à sua mãe; ri-se, mas é de prazer e de alegria; e leva todo o tempo a brincar entre as palavras, como o colibri no meio das flores.

Vou mostrar-vos essa face risonha do ponto de interrogação, esse verso da medalha cunhada pelos gramáticos.

É uma poesia que li, não sei onde, e que só tem um defeito: o de ser uma pergunta sem resposta.

Ei-la: [...]


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